Era a minha primeira aula do cursinho, o qual finalmente me matriculara. Depois de um certo tempo sem qualquer expectativa resolvi retomar meus estudos, e me sintia bem com isso. Me faz sentir viva, me entusiasma o mundo dos concursos. Acho que porque nos faz traçar metas, nos impulsiona para o buscar mais, e nos possibilita enxergar um futuro em que se tenha mais dinheiro no bolso e menos preocupação.
A aula era de Língua Portuguesa e a professora, lecionando sobre os elementos textuais de coesão-conexão, trouxe um texto de Bertrand Russel. De logo o reconheci. Tratava-se de uma autobiografia deste filósofo, entitulado de "minha vida". Lembrei emocionada de onde o havia lido pela primeira vez. O mesmo texto tem início com uma frase, que encontrei entre seus documentos pessoais no computador da minha prima que havia falecido há um pouco mais de um ano. Passaram-se 14 meses, é verdade. E como passa rápido um ano, é nessas horas que damos conta de que a nossa vida inteira além de frágil, é também muito curta. Nosso relógio de repente marca os ponteiros. A tal frase havia me chamado atenção e fiz questão de incluir no livro que seu pai produziu recentemente, em homenagem à ela.
Eu não conhecia o autor, nem sua obra. Não sabia a continuação da frase encontrada, seu contexto. Naquela aula inaugural, com minha alma cheia de coragem para prosseguir na minha jornada, como eu havia prometido a ela que faria logo passado o impacto de sua partida, eu fiquei sabendo. Eis o texto:
“Três paixões, simples, mas irresistivelmente fortes, governaram a minha vida: a ânsia de amar, a busca do conhecimento e uma insuportável compaixão pelo sofrimento da humanidade.
Essas paixões, como fortes ventos, têm me impelido de um lado para o outro, num caminho caprichoso, por sobre um profundo oceano de angústias, que chega à beira do desespero.
Primeiro procurei o amor, que trás êxtase – êxtase tão imenso que eu daria todo o resto da minha vida em troca de umas poucas horas desse prazer. Eu o procurei, também, porque ele ameniza a solidão – aquela terrível solidão na qual uma consciência em pedaços se paralisa nas franjas do mundo num insondável abismo frio e sem vida. Eu o busquei, finalmente, porque na união do amor eu vislumbrei, em mística miniatura, a suposta visão do paraíso que santos e poetas imaginaram. Isto foi o que procurei, e embora possa parecer demasiado bom para a vida humana, foi o que – finalmente – eu encontrei.
Com a mesma intensidade busquei o conhecimento. Desejei entender os corações dos homens. Eu quis saber por que as estrelas brilham. E tentei apreender o poder pitagórico que faz com que um número flutue por sobre o fluxo. Um pouco disso, não muito, eu consegui. Amor e conhecimento, tanto quanto foi possível, elevaram-me em direção ao paraíso.
Mas a compaixão sempre me trouxe de volta à Terra. Ecos de gritos e de dor reverberam no meu coração. Crianças famintas, vítimas torturadas por opressores, velhos desassistidos como um odioso fardo para seus filhos, e o mundo inteiro de solidão, miséria e sofrimento, fazem um arremedo do que a vida humana deveria ser. Eu desejo minorar o mal, mas não posso, e sofro também.
Esta foi a minha vida. Eu a entendo como uma vida digna, e prazerosamente a viveria outra vez se uma oportunidade me fosse dada”
Eu passei a aula toda imaginando o que minha prima havia achado destas palavras. E encontrei a resposta. Ela se identificou com essas paixões porque as mantinham em sua vida, tanto que as guardou para si. Naquele dia estudando minuciosamente esse texto em sala, eu podia vê-la em cada linha, em cada parágrafo. Ela tinha um imenso amor à vida! Sabia ser feliz, em todos os aspectos de sua vida breve. Tinha o coração cheio de amor; soube amar e ser amada. Era sensível por demais aos problemas do próximo e do mundo. Tinha sede de saber. Não digo isso com lentes de aumento. É bem verdade que a saudade gigante que sinto transcende qualquer razão, mas, afirmo, não acrescento um só crédito à sua existência pelo fato dela não estar mais aqui hoje. Ela sempre foi um espelho pra mim, embora fosse um ano mais nova que eu. Com ela eu pude aprender de coisas simples como dar o laço no tênis à como viver sem medo de ser feliz. Ela assim como o poeta viveria prazerosamente uma outra vida se tivesse como. Ah, se houvesse essa chance! lembro que pensei comigo.
De alguma forma eu a senti naquelas horas. Ela estava presente em mim. Não escondo a sensação de tê-la perto. Senti por um momento que aquele texto tivesse sido programado por ela para mim. Coincidência ou não, uma voz me dizia: "Estou feliz por recomeçar!" Sei que é isso que ela esperaria de mim, e é isso que tento perseguir até hoje, e vou continuar perseguindo até o fim.