domingo, março 27, 2011

Um inteiro que se vê metade



Uma mulher que insiste em se ver menina. 
Um inteiro que se vê metade.
Não conhecia o que possuia.
Ela já tinha mais de 25, tinha uma profissão, um diploma.
Tinha um escritório, e um sócio pra dividir as responsabilidades. 
Não tinha patrão nem qualquer pressão não advinda de si mesmo.
Tinha clientes e tantos colegas que confiavam nela. Pessoas que a admiravam.
Tinha determinação pra lutar. Tinha talento. 
Sim, ela era tão capaz, sem saber.
Já pagava suas contas. Tinha seu próprio carro.
Certo que havia por vezes aquele mês, em que não pingava nada em sua conta bancária, mas sempre surgia um jeito. Uma solução, mesmo que essa fosse um pedido de socorro pra mãe ou pro pai.
Mas no fim sempre dava certo. 
Ela tinha uma família maravilhosa. Pais, irmãos, avós, tios, primos, unidos. 
Residia num apartamento de classe média na cidade que sempre sonhou morar.
Tinha piscina, parquinho pra levar seus sobrinhos.
Tinha sobrinhos, fofos, lindos, e não tinha que perder sono com eles, ou perder o juízo. 
Aliás, ela podia perder o sono se assim optasse. Sofrer de insônia. Ela tinha a madrugada toda a sua disposição.
Ela fazia academia. Tinha o peso ideal. Nenhum tipo de complexo. 
Ela podia fazer o que quizesse.
E ela tinha o mundo ao seu alcance. 
Ela tinha o pôr do sol na janela da sala. E a lua da sua cama.
Cama de casal só pra si. Um banheiro só seu. E uma tv pra não adormecer sozinha.
Ela podia num sábado ou domingo acordar cedinho, pegar seu carro, e ir ver o mar.
Caminhar de frente pro infinito.
Ou ver a cidade dormindo com um bom som de plano de fundo.
Ela podia fazer a mala e viajar. Se aventurar.
Ah, ela tinha amigos. Alguns longes, muito longe, outros vizinhos.
Podia a noite sair com alguns deles. Beber um pouco. Conversar. Ouvir uma boa música ou forró mesmo. Dançar. Conquistar.
Ela podia se arrumar toda. Pegar pesado na maquiagem. Usar aquele vestido curtíssimo, e ter os olhares que quizesse voltados pra si.
Ela podia ir ao cinema sozinha assistir a um filme bobo. Se embreagar de chocolate e muita pipoca.
Ela podia tantas coisas... 
Mas ela não tinha noção de meia parte disso.
Do mundo de possibilidades a sua volta. A um passo de si.
De tudo, ela só sabia por exato o que ela não tinha.
O amor.

sábado, março 26, 2011

O medo de não amar

"Este vazio de amor todos os dias: a cabeça pesada ao meio-dia, a boca amarga, um cheiro de sono e solidão nos cabelos..."
(Caio Fernando de Abreu)

Só podia ser uma força negativa muito grande que regia tudo a sua volta, e a impedia de viver aquilo que ela, tão sonhadora, sempre desejou. Era tantos desencontros, ilusões, tantas coincidências ao avesso, que só podia chegar-se a acreditar que uma espécie de mal interferia sempre em sua vida, de modo a nunca, jamais, se concretizar o que tantas vezes esteve a um passo disso. Aquela mulher já na idade, mas menina no seu jeito de acreditar em contos de fadas, parecia estar com o destino marcado. Condenada a não ser feliz. A ser sozinha no mundo. Sua cina era não viver o amor. Essa coisa que ela nem sabia direito o que que era, mas que sonhava todos os dias em se entregar a ele. Ela queria se embreagar nesse sentimento. Ser de alguém ao passo que esse mesmo alguém seria dela. A essa altura, isso parecia tão impossível aos seus olhos. Já não tinha forças pra acreditar que do nada, assim como uma borboleta a pousar em alguém, aconteceria enfim todos os sitomas que se diz sentir. Coração acelerado, suor frio, tremedeira, aperto no peito. Isso tudo duradouramente. Sem validade nem vencimento. Ser amada, cuidada, por um sempre muito longo. 

Ela ouvira algumas vezes falar-se em culto do mal, magia negra, macumbaria. E assim como ela acreditava num Deus que criou o mundo e a humanidade, ela sabia que existia o outro lado da moeda. Sabia, embora nunca desconfiasse das pessoas, como se elas fossem incapazes de fazer o mal, que havia alguns que andavam pelos caminhos errados, insistiam em fazer sofrer muitas vezes quem mais os deram a mão. Era assim: tudo na vida, uma dualidade. O bem e o mal, o certo e o errado. O limpo e o sujo. Assim também era as pessoas. E sinceramente ela começava a desconfiar de que no seu passado alguém poderia ter rogado contra ela alguma espécie de feitiço, maldição ou coisa assim. 

Sempre que pensava nisso, mudava de idéia e achava melhor acreditar que só ainda não era o tempo certo pra viver isso. Pode ser. Pra cada coisa há um espaço no grande relógio da vida. O certo era torcer para o tic-tac tictacar bem acelerado porque não se podia mais esperar. E fora isso, ela, com sua fé desbotada, pedia a Deus, a Ele que é mais poderoso que qualquer força do mal, que ganhasse do dragão e lhe desse a paz. Lhe desse o amor.

sexta-feira, março 25, 2011

O caminho a cada passo


"Pois existe a trajetória, e a trajetória não é apenas um modo de ir. 
A trajetória somos nós mesmos. 
Em matéria de viver, nunca se pode chegar antes."
(Clarice Lispector)


Era uma confusão de sentimentos. Sensações emergidas de uma tempestade de desejos, preceitos, promessas. Uma guerra. Uma luta dentro de si mesma. Ela queria correr, fugir desse entrave, mas pra qualquer lugar que fosse tudo isso permaneceria lá. Fazia parte de si. 

Tantos caminhos... O que eles trazem consigo não se pode ter conhecimento. É preciso escolher. Fazer sua própria trilha. Essa era a sua grande dificuldade. Decidir o que deveria viver. Ela sabia que não tinha muito tempo pra isso. E essa certeza é o que mais a atormentava. Ela tem pressa, mas sempre acaba se deslumbrando com algumas flores no caminho. Se distrai muitas vezes. E muitas vezes pensa que basta só sentir aquele doce perfume, e ver as múltiplas cores das pétalas. Então, esquece de continuar. Se perde de si mesma. Se perde do sonho. Da promessa que fez.
 
Eis a guerra dela com ela mesma. A vontade de agora versus o sonho de amanhã.

Talvez ela nem tivesse que optar. Talvez só tivesse que viver. Tudo, de cada vez. Seu caminho a cada passo.